domingo, 6 de janeiro de 2013

"O sono tornou-se inquieto por alguns instantes. "Sonhei que estavam me matando", comentou o psicanalista Hélio Pellegrino com a mulher, a escritora e tradutora Lya Luft, durante a madrugada da segunda-feira, dia 21 de março de 1988. Tema comum na obra de ambos, a morte parecia ser apenas objeto de inspiração. Infelizmente, não era - incomodado por um desconforto gástrico, Pellegrino foi internado naquela manhã, depois de constatado um pequeno infarto. E, quando parecia que a recuperação se finalizava, uma parada cardíaca fulminante o matou. Era 23 de março. Ele estava com 64 anos e com muitos projetos. Na cabeceira do hospital, repousava o livro Les Grands Cimetières Sous la Lune, de Georges Bernanos (1888-1948), um libelo contra a ditadura espanhola de Franco, que ambos liam juntos.


A perda súbita transtornou Lya. Suspensa da realidade pela dor, ela decidiu transformar o travo no coração em poesia, a fim de se salvar da loucura e até da própria morte. Nascia O Lado Fatal, caminho que encontrou para perpetuar uma relação tão bruscamente interrompida.
Trata-se de 40 poemas escritos num rompante, um por dia, que conciliam sentimentos contraditórios como raiva e pesar, esperança e desalento, dor e esperança. O perfil fragmentado do homem que tanto amou. "Foi o caminho que encontrei para compartilhar com todos minha convivência com um alguém particular", comenta Lya que, anos depois, ao iniciar uma nova vida, decidiu tirar o livro de circulação - não renegava a obra, mas acreditava que o sentimento ali traduzido tornou-se particular.
A força de O Lado Fatal, porém, acabou se impondo. Depois de se habituar a ser cobrada pelos leitores e de acompanhar infinitas reproduções dos versos na internet, Lya telefonou para Luciana Villas-Boas - diretora editorial da Record (que publica a obra da autora) e batalhadora pela volta da obra às livrarias - e concedeu o esperado "sim". "O tempo passou, encontrei uma nova felicidade pessoal. Tais mudanças me convenceram de que o livro não pertence a mim, mas aos meus leitores."
Outro motivo foi o interesse do ator Juca de Oliveira em comandar uma montagem teatral do texto. "Eu o conheço há muito tempo, confio em sua sensibilidade e sei que será muito respeitoso", comenta Lya, que já aprovara, em 1995, uma encenação estrelada por Beatriz Segall e dirigida por Márcio Vianna. "Foi uma peça linda, que tinha a mesma intenção de quando escrevi o livro: despertar nas pessoas um encantamento amoroso."
Lya faz uma deferência ao Estado ao conversar por telefone, desde Porto Alegre. "Aceitei relançar o livro, mas não queria dar entrevistas", explica, abrindo uma única exceção. Ela conta que fez pequenos reparos no texto, atualizando alguns pontos, mas mantendo sua integridade. "O Lado Fatal não foi pensada como uma obra literária, pois foi um desabafo em um momento sombrio."
O relacionamento com Hélio Pellegrino foi curto (27 meses) mas intenso. Eles se conheceram em abril de 1985, durante um congresso de escritores em São Paulo. Respeitavam-se, mas sabiam apenas o nome do outro. Foram apresentados por Nélida Piñon e conversaram pouco mais de 20 minutos, tempo suficiente para despertar mútua curiosidade. Ele começou a ler seus romances e a telefonar para Porto Alegre - revelou uma visão particular da obra dela que a encantou.
Nove meses depois, Lya tomou a decisão: em uma noite de chuva, fez as malas e tomou um avião para o Rio, deixando para trás um sólido casamento de 22 anos com o filólogo Celso Luft, uma grande casa, três filhos. "Rezava para o avião cair, para eu não ter de enfrentar a situação", disse, em uma entrevista dada na época.
Felizmente, nada aconteceu, apenas o início de uma nova fase. Ela estava com 46 anos; ele, com 61 e também uma consolidada história de vida (dois casamentos, seis filhos). Pareciam, no entanto, jovens fazendo descobertas. "Aquele que eu amei era um visionário: levava-me à sua terra, onde, ébrios de tanta luz e tanto céu, percorríamos a sua juventude", diz ela, no poema 12. "Quem eu amei era da banda dos visionários: capaz de morrer sem abdicar do sonho."
Ágil, inquieto, Pellegrino sempre soube que amor e morte caminham juntos. Tais temas fascinavam o casal, interessado em um assunto comum: a alma humana. O psicanalista, aliás, acostumara-se com a finitude desde jovem, quando, aos 18 anos, sofreu um infarto sério. Desde então, mantinha cuidados espartanos, vigiando a alimentação, tomando os remédios nos horários devidos.
"Ele era um homem impaciente: brigava no trânsito, detestava filas, batia portas com força quando perdia suas coisas", observa Lya no poema 16. Mais adiante, a redenção: "Mas quando um dia chorei porque falou alto comigo, mandou-me rosas que espalhei pela casa toda."
A separação foi tortuosa, imperdoável, mas deixou lições - o respeito pela morte fez com que Lya aprendesse a amar a vida.
Nascido em 1924, Hélio Pellegrino foi um psicanalista célebre pela militância de esquerda. Foi amigo de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Nélson Rodrigues.
(Artigo escrito por Ubiratan Brasil - O Estado de S. Paulo)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

"Há mais de quinze anos atrás publiquei no Jornal do Brasil um artigo sob o título “Rejuvenescer como águias”. Relendo aquelas reflexões me dei conta como de elas são ainda atuais nos tempos maus sob os quais vivemos e sofremos. Retomo-as para alimentar nossa esperança enfraquecida e ameaçada pelas ameaças que pesam sobre a Terra e a Humanidade. Se não nos agarrarmos a alguma esperança, perdemos o  horizonte de futuro e corremos o risco de nos entregarmos ao desamparo imobilizador ou à resignação estéril.
Neste contexto lembrei-me de um mito da antiga cultura mediterrânea sobre o rejuvenescimento das águias.
De tempos em tempos, reza o mito, a águia, como a fênix egípcia, se renova totalmente. Ela voa cada vez mais alto até chegar perto do sol. Então as penas se incendeiam e ela toda começa a arder. Quando chega a este ponto, ela se precipita do céu e se lança qual flecha nas águas frias do lago. E o fogo se apaga. Mas através desta experiência de fogo e de água, a velha águia rejuvenesce totalmente: volta a ter penas novas, garras afiadas, olhos penetrantes e o vigor da juventude. Seguramente este mito constitui o substrato cultural do salmo 103 quando diz:”O Senhor faz com que minha juventude se renove como uma águia”.
E aqui precisamos ser um pouco psicólogos da linha de C.G. Jung que tanto se ocupou do sentido dos mitos. Segunda esta interpretação, fogo e água são opostos. Mas quando unidos, se fazem poderosos símbolos de transformação.
O fogo simboliza o céu, a consciência e as dimensões masculinas no homem e na mulher. A água, ao contrário, a terra, o inconsciente e as dimensões femininas no homem e na mulher.
Passar pelo fogo e pela água significa, portanto, integrar em si os opostos e crescer na identidade pessoal. Ninguém ao passar pelo fogo ou pela água permanece intocado. Ou sucumbe ou se transfigura, porque a água lava e o fogo purifica.
A água nos faz pensar também nas grandes enchentes como conhecemos em 2010 nas cidades serranas do Estado do Rio. Com sua força tudo carregam, especialmente o que não tem consistência e solidez. São os infortúnios da vida.
E o  fogo nos faz imaginar o cadinho ou as fornalhas que queimam e acrisolam tudo o que não é ganga e não é essencial. São as notórias crises existenciais. Ao fazermos esta travessia  pela “noite escura e medonha”, como dizem os mestres espirituais, deixamos aflorar nosso eu profundo sem a ilusões do ego. Então amadurecemos para aquilo que é autenticamente humano e verdadeiro. Quem recebe o batismo de fogo e de água rejuvenesce como a águia do mito antigo.
Mas abstraindo das metáforas, que significa concretamente rejuvenescer como águia? Significa entregar à morte todo o  velho que existe em nós para que o novo possa irromper e fazer o seu curso. O velho em nós são os hábitos e as atitudes que não nos engrandecem: a vontade de ter razão e vantagem em tudo, o descuido para com o lixo, o desperdício da água e o desrespeito para com a natureza, bem como a falta de solidariedade para com os necessitados, próximos e distantes. Tudo isso deve ser entregue à morte para podermos inaugurar uma forma de convivência com os outros que se mostre generosa e cuidadosa com a nossa Casa Comum e com o destino das pessoas. Numa palavra, significa morrer e ressuscitar.
Rejuvenescer como águia significa também desprender-se de coisas que um dia foram boas e de ideias que foram luminosas mas que lentamente, com o passar dos anos, se tornaram ultrapassadas e incapazes de inspirar o caminho da vida. Temos que nos renovar na mente e no coração.
Rejunecer como águia significa ter coragem para recomeçar e estar sempre aberto a escutar, a aprender e a revisar. Não é isso que nos propomos a cada  novo ano?
Que o ano de 2013 que se inaugura, seja oportunidade de perguntar o quanto de galinha existe em nós que não quer outra coisa senão ciscar o chão  e o quanto de águia há ainda em nós, disposta a rejuvenescer ao confrontar-se valentemente com os tropeços e as crises da vida. Só então cresceremos e a vida valerá a pena.
E não podemos esquecer aquela Energia poderosa e amorosa que sempre nos acompanha e que move o inteiro universo. Ela nos habita, nos anima e confere permanente sentido de lutar e de viver.
Que o Spiritus Creator nunca nos falte!
Feliz Ano novo de 2013."
          (Leonardo Boff)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

As promessas do início do ano são sempre comuns. Projetos, metas, sonhos, ideais. A ilusão que quando o "novo" começa e com ele a possibilidade de fazermos o que há muito desejamos, é sempre estimulante. 
Mas, e o que aprendemos ao longo da trajetória passada, do momento vivido, do encontro que fez efeito e trouxe sentido?
Olhar para frente é importante, necessário até, mas o que ficou lá trás também referencia o que somos hoje e o que desejamos amanhã.
A idéia de deixar o passado no passado é questionável, pois somos efeito e feito desse passado. Um passado com dramas ou felicidades, um passado traumático ou estimulante, um passado triste ou alegre. Quando temos a coragem de mexer nesse passado, ele vai nos lembrar das perdas e das dores que eventualmente existiram. Lembrar como as superamos pode ser muito empolgante, muito estimulante, pode ser realmente um recomeço.
Mas quando o ano começa, a tradição nos diz, "olhe para frente", "pense o que desejas para o ano que se inicia"! Imperativamente, nos sentimos renovados, com o prazo de vencimento zerado e a validade reiniciada para tentar mais uma vez ao longo dos próximos 365 dias o que não fizemos nos 365 passados. 
Mas por que não fizemos o que nos propomos fazer? Vale a reflexão! 
Desejamos que o novo ano seja de força para seguir em frente nas propostas, metas e ideais, mas não sem antes espiar o que não foi possível de seguir, continuar e realizar. 
Para isso, é necessário coragem; que em 2013 você tenha de montão!