sexta-feira, 26 de abril de 2013



Para Autran Dourado

Durante uns seis meses - ou seriam oito? - senti que uma espécie de nuvem escura pairava sobre o nosso apartamento. Nuvem? Talvez não, talvez fosse uma teia de aranha gigantesca, invisível a olho nu, mas tão espessa que chegava a ser quase palpável. Como não sou supersticiosa, inicialmente pensei em sujeira mesmo, literal. Vasculhei todos os cantos de todos os cômodos, olhei atrás das portas, abri armários, subi numa escada e examinei minuciosamente o interior das sancas brancas, imaculadas. Nada. Tudo limpo, praticamente asséptico. 
Cumprida essa etapa pragmática, mudei os rumos da investigação solitária, ansiosa para desvendar o mistério da sombra, que se tornava mais densa ainda nos finais de semana. 
Em incontáveis sábados e intermináveis domingos, ele permanecia sentado em frente ao computador, com fones nos ouvidos. Aparentemente, não trabalhava, não lia e nem jogava, apenas ficava postado diante da tela, imóvel, escutando música.
 Naqueles meses, eu estava fazendo um trabalho muito difícil que me encomendaram, e aproveitava cada minuto, no meu próprio escritório, só parando para preparar a comida, tentando fazer com que ele comesse, já que durante a semana ele fazia as refeições no trabalho e se queixava de falta de apetite. 
As comidas da roça, como as chamava, eram-lhe mais atraentes. Da roça mesmo, lá dos fundões das Gerais, das quais aprendera a gostar comigo, como mostarda ou taioba refogada, alcatra moída feita com batatinha, muito bem temperada, chuchu ou abobrinha batida, jiló e inhame cozidos, couve picada. 
Elogiava o almoço, sempre gentil e cavalheiresco, escovava os dentes rapidamente, e voltava à sua posição na eterna cadeira do eterno computador do eterno quarto. 
Nesse ínterim, a sombra, que se tornava menos escura durante a refeição, de novo se avolumava. O mais estranho é que nada recendia a mágoa ou ressentimento, nem a indiferença ou agressividade. A tal nuvem era feita de outra matéria, mais complexa e misteriosa, completamente desconhecida para mim. 
Depois de lavar as vasilhas e de limpar o chão da cozinha, eu voltava ao trabalho. Com o passar das horas, ia até o seu quarto e o encontrava na mesma posição. Ensaiava um afago no seu cabelo, punha as mãos na sua testa suada para sentir sua temperatura, sempre um pouco mais alta que o normal. Ele tentava retribuir com um sorriso quase imperceptível, olhava intensa e muito rapidamente para mim, abaixando um pouco a cabeça, de maneira meio constrangida, como se pedisse desculpas por algo que eu desconhecia. 
Eu saía logo em seguida, para beneficiá-lo com a minha ausência, não por sentir-me rejeitada, mas queria livrá-lo da obrigação que a minha permanência ali lhe impunha, fosse ela qual fosse. Tinha vontade de perguntar o quê, afinal, estava acontecendo além do que eu já sabia, mas temia esgarçar algum fio da renda de bilro que há 35 anos tecíamos juntos, desagradava-me a mais remota possibilidade de arranhar o fino cristal que há décadas forjávamos. 
Além do mais, eu sabia que não faria frente a um silêncio tão obstinado, que certamente recrudesceu na fase da clandestinidade, nos tempos da ditadura, quando não se podia falar nada, por razões de segurança. E que posteriormente acentuou-se ainda mais nas sessões de tortura, numa das quais um agente da repressão, desanimado e exausto, comentou com os colegas que praticavam o horripilante e vil ofício: por hoje, terminamos, pessoal. Com esse aí não tem jeito não, não abre o bico, só matando mesmo. 
Em certos dias demorava a me concentrar no trabalho. Preocupada com o prazo de entrega, decidida a resolver o problema de uma vez por todas, se é que havia algo a ser resolvido, pegava as chaves do carro, postava-me diante dele, perguntando-lhe se queria que o levasse ao pronto-socorro. Depois de lançar-me o mesmo olhar que me intrigava, respondia suavemente que não, não queria ir a lugar nenhum.
 Depois dessas tímidas tentativas, eu retornava ao meu posto, lançando mão do batido pragmatismo dos capricornianos, e ia trabalhar. Mas a nuvem não desaparecia, e era um alívio quando chegava a hora de dormir. 
O sono demorava a chegar, e eu ficava tecendo conjeturas sobre o real significado daquele olhar. Ora me parecia de compaixão - mas, compaixão por mim, que não estava doente? Ora o interpretava como desânimo, cansaço. Em alguns momentos, falava de dor física, muita dor, uma dor desesperada, insuportável mesmo. Depois me parecia que impotência era a palavra-chave. Em raros instantes, pensei ter visto uma fagulha de despedida, um aceno de adeus. O fato é que havia algo oculto e ao mesmo tempo muito claro, que eu quase pegava com as mãos, concretamente, mas que no instante final desaparecia, esfumaçava-se. 
Com medo de ser omissa, tentei abordar o assunto de maneira mais direta, perguntando-lhe se queria ir a um psiquiatra ou psicólogo, se deveríamos buscar um terapeuta. Além da doença crônica, quem sabe estaria com depressão? Invariavelmente, ele respondia com o mesmo esboço de sorriso, balançando a cabeça negativamente. A essa altura eu desistia, por saber que ele consideraria qualquer continuação dessa conversa como invasão de privacidade, falta de respeito. 
Certa vez pensei em falar-lhe da nuvem escura, mas não tive coragem, temendo que minhas mãos, descalçadas das luvas de cetim, pudessem fazer-lhe algum dano. E depois, achei-o muito frágil, pálido e um tanto ofegante. Calcei novamente as luvas, que nem sequer cheguei a tirar, de todo.
 Passados esses meses, continuo me perguntando o quê diziam mesmo aqueles olhos, que contavam uma história cujo desfecho eu só descobri depois. Saberia ele o resto da narrativa? Em algum lugar de sua mente haveria uma espécie de vislumbre? Teria premonições em relação à sua morte? Será que sentiu medo, desamparo, tristeza, angústia, e preferiu guardá-los para si, não quis dividir, para poupar-me, para proteger-me da dor? 
Nunca saberei, jamais saberemos, os que ficamos. Agora não há mais nuvem escura, transformada que foi em tempestade, enchente, tromba d'água, tsunami. Cedeu lugar ao vazio, ao silêncio, à falta, à ausência. Como escreveu Lya Luft, "a perda do amor levado pela morte é a perda das perdas". 

(Texto extraído do blog VERBO21 - cultura & literatura. Crônica escritura por Rosângela Vieira Rocha)

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